UM PARLAMENTO QUEIROZIANO
Este é o parlamento de Eça de Queirós
14.12.2008, Texto Tolentino de Nóbrega
Insultos, agressões físicas e ameaças. É a Assembleia da Madeira, que de tal forma lembra Uma Campanha Alegre que foi ordenada uma décalage de cinco minutos na transmissão do plenário online. Mais ou menos democrática, a ideia foi impedir o visionamento de "cenas desprestigiantes". Mas isso não muda a realidade. Memórias de mais de 30 anos de episódios.
A opinião tem pela Câmara dos Deputados um sentimento unânime e unanimemente declarado: o tédio. Diz-se mal da Câmara por toda a parte. Os jornais mais sérios falam constantemente da sua improdutividade. Ela é geralmente considerada como um sórdido covil de intrigas. Se se pergunta:- Que houve hoje na Câmara?- Uma farsa - respondem uns.- Uma feira - respondem outros."Não era sobre a Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) que escrevia Eça de Queirós, em Maio de 1871. O parlamento regional só foi criado um século depois, mas em apenas três décadas de existência, marcada por picardias nalguns casos de cariz insultuoso e acompanhadas de agressões físicas, pouco parece diferir da câmara de deputados retratada pelo escritor em Uma Campanha Alegre. O recente episódio do deputado do PND, José Manuel Coelho, a desfraldar uma bandeira com a cruz suástica no parlamento, em protesto contra o novo regimento, que restringia os direitos de iniciativa e intervenção dos partidos da oposição, colocou nas primeiras páginas dos jornais e na abertura dos telejornais o hemiciclo da Avenida do Mar. Sobretudo pela consequente "imediata suspensão" do deputado, acusado de "demência" em processo sumaríssimo e sem direito a defesa, por requerimento do PSD. No dia seguinte, prossegue Eça de Queirós, "os jornais políticos vêm cheios destas fórmulas: 'A Câmara ontem deu um espectáculo triste para quem preza os verdadeiros princípios... 'A Câmara está oferecendo a prova da sua falta de independência...' 'A Câmara salta por cima dos princípios mais rudimentares da administração'."- O parlamento é uma vergonha - diz-se nos cafés.- Vamos aos touros! - exclama-se nas galerias (textual).- Amanhã há escândalo! - murmura-se na véspera das sessões.E houve. De facto, o deputado foi impedido de entrar no parlamento. E o líder regional do PND, Baltazar Aguiar, expulso da galeria do público por exaltados protestos contra a suspensão do "deputado do relógio", sem prévio procedimento judicial. "Não! Isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando", escreve Queirós. Depois, adianta o escritor, "aparecem contra ela panfletos satíricos". No quinzenário Garajau, a preencher toda a capa, surge uma foto de Jardim, vestido de Hitler e bandeira nazi em fundo, com uma sua frase sobre a oposição em parangonas: "Mas não posso estar em todo o lado e por isso peço ao povo que vá tratando deles enquanto eu vou trabalhando."Fazem-se-lhe epigramas, põem-se-lhe alcunhas. Os folhetins escarnecem-na; os jornais de notícias contam com uma singeleza dramática: "Ontem a sessão passou-se em injúrias pessoais."Contam os diários que Jardim verberou aquelas "palhaçadas de uns analfabetos, na Assembleia Regional". Apontando-lhes "impotência" e "indigência cultural e política", disse que têm por objectivo "tentar abandalhar os trabalhos da assembleia" e "são preparadas fora desta por conhecida burguesia ambiciosa", a qual, "se tivesse rédea solta, voltar-se-ia à exploração do povo como no passado". Para cortar o mal pela raiz, isto é, o comando exterior, o presidente do parlamento, Miguel Mendonça, ordenou que houvesse uma "décalage de cinco minutos" na transmissão do "plenário online", para poder impedir o visionamento de "cenas desprestigiantes".Um dos primeiros episódios nada prestigiantes aconteceu logo no final da primeira legislatura, quando o parlamento ainda funcionava no antigo salão nobre da Junta Geral do Distrito, com deputados sentados em carteiras escolares. O padre Martins Júnior, então deputado eleito pela UDP, foi violentamente agredido no interior da assembleia. Identificou como autor da agressão, confirmada por relatório médico, um deputado do PSD, mas o inquérito acabou por ser arquivado por falta de provas. Quase 30 anos depois, em Março de 2006, o secretário-geral do PSD, Jaime Ramos, terá tentado agredir o irmão daquele padre, Bernardo Martins (PS), no que foi impedido por outros deputados que participavam na conferência de líderes, no intervalo do plenário. Por "filho da puta", entre outros impropérios, foi tratado o deputado do PS só porque se insurgiu contra a forma pouco cortês como Ramos reagiu a uma intervenção de Violante Saramago Matos. "Vai à merda", rematou o número dois do PSD madeirense quando esta deputada do Bloco de Esquerda discordava da interpretação do regimento a adaptar numa sessão especial. Como noutras circunstâncias, o presidente do parlamento, Miguel Mendonça, lembrou que não tem "poderes disciplinares sobre os deputados" que, no quadro dos seus deveres, têm a obrigação de respeitar a autoridade da mesa". Mas esta, lamentou, nem sempre é obedecida, "apesar dos apelos à contenção". Mendonça, conforme revelaram deputados oposicionistas, terá sido mesmo insultado por um companheiro de partido, numa anterior conferência de líderes.Pouco cavalheiro tinha sido igualmente Ramos ao tratar por "cabra" outra deputada, Rita Pestana (PS), num plenário. Mais longe foi, no final da legislatura em 2004, na ameaça de "um tiro nos cornos" ao líder comunista Edgar Silva. Em debate estava a constituição de uma comissão de inquérito pedida pelo PCP à derrapagem da empreitada do Parque Temático de Santana, em que estariam envolvidas construtoras ligadas ao líder parlamentar do PSD.Por "tonto" tratou Jardim o antigo primeiro-ministro António Guterres e Jaime Gama, antes de o actual presidente da Assembleia da República descobrir que o líder insular passara de Bokassa a "supremo exemplo de democracia". Na discussão do Plano e Orçamento para 1996, prolongados até de madrugada, Jardim, numa eufórica reacção pós-jantar, interrompeu várias vezes a intervenção de Gil França, chamando "burro" ao orador. Mas não gostou que o deputado do PS lhe devolvesse o epíteto "com a mesma simpatia", e, em protesto, abandonou a sessão, o que, a qualquer pretexto, se repete na única vez que anualmente vai ao parlamento, para discussão do Plano e Orçamento. Dois anos depois, novamente num desses debates, o presidente madeirense classificou de "delinquentes potenciais" e "perigo social" os dois deputados do PCP, Edgar Silva e Leonel Nunes. Ainda em 1998, o deputado Coito Pita (PSD), em tom ameaçador, desafiou a "ir lá fora" Martins Júnior (então no PS), designando-o por "fantoche comunista", numa troca de insultos que esteve à beira das vias de facto. A Martins Júnior o PSD levantou a imunidade para responder em tribunal pelas suspeitas levantadas ao desaparecimento de valiosíssimas pratas, em 1997, aquando da transferência do parlamento para a antiga Alfândega, a cargo de deputados da maioria que, não raras vezes, têm posto em causa as capacidades intelectuais de deputados das minorias. Em Fevereiro de 2002, o PSD aprovou na Assembleia um requerimento no sentido de proceder à "avaliação das faculdades mentais" do deputado João Carlos Gouveia, hoje líder do PS madeirense. "É próprio dos regimes fascistas e dos ditadores ameaçarem os seus opositores com a prisão ou com o hospital psiquiátrico", comentou Bernardo Martins, líder da bancada socialista, ao apresentar um voto de protesto pela apresentação do requerimento e pela conduta do presidente ao admiti-lo para votação, "atentatória da dignidade dos deputados" e "desprestigiante para o parlamento e para a região".Por condenar "o comportamento de verdadeiros garotos" dos seus companheiros de partido, Virgílio Pereira foi alvo de processo disciplinar ordenado por Jardim e afastado da vice-presidência da comissão política do PSD, num congresso extraordinário convocado expressamente com esse objectivo. "Que me demitam, se quiserem. Não sou eu que prejudico o partido, o que prejudica o PSD são certos comportamentos", respondeu Pereira. "Talvez seja o político que menos insultou os adversários, algo que, pelos vistos, se tornou hábito na Madeira. Nunca utilizei termos como 'burro' ou 'tonto' para me dirigir aos meus opositores, por exemplo", lembrou, numa indirecta a Jardim, aquele antigo presidente da Câmara do Funchal e ex-eurodeputado. "Se não respeitamos a dignidade dos cargos, não dignificamos a política", advertiu.Quando, também em 2005, o Tribunal do Funchal condenou João Carlos Gouveia por crime de difamação a Jardim, a defesa do deputado contrapôs com os "excessos verbais" do governante que mereceu do jornal espanhol El Mundo o título de "o mestre português do insulto". A sentença reconheceu que "o contexto político da Madeira é caracterizado por uma particular contundência, à qual não é alheio o discurso político do próprio" presidente do governo regional. Aliás, imitado pelos seus pares. "Burro" chamou Ramos, em Dezembro de 2004, ao líder do PS, Jacinto Serrão, na discussão do programa de governo. Interrompido por constantes apartes do chefe do governo, Serrão lembrou a Jardim que na véspera ouvira em silêncio o seu discurso de duas horas e meia, tão longo que, disse, faria "adormecer rinocerontes". A este comentário reagiu energicamente Ramos, que endereçou ao dirigente socialista os epítetos de "rinoceronte", "gatuno" e "burro".Aconselhando Ramos a não entrar pelo "caminho da zoologia", Serrão acusou o também secretário-geral do PSD de chegar a "milionário ao fim de dez anos", quando antes era "vendedor de sifões de retretes". "Jaiminho, Jaiminho, onde arranjaste o dinheiro?", questionou. O ambiente aqueceu tanto, com troca de impropérios imperceptíveis, que ficou impróprio para prosseguir o debate. No longo discurso de abertura, Jardim acusou o PS de "colonialista", o PCP de "polícia política" e o BE de "partido das tias de Cascais", além dos habituais ataques a Lisboa, esteja no poder o PS ou o PSD. Em Julho de 2005, quando Jardim quis expulsar os chineses da Madeira, o PSD aprovou no parlamento um voto de protesto pelo pedido de desculpas à China apresentado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. O documento mostrava estranheza "não só ela demência de tal medida, bem como pela pessoa que a produz", o "sr. Diogo" [Freitas do Amaral].Um mês antes, os deputados sociais-democratas aplaudiram, de pé, os insultos de Jardim aos "bastardos, para não lhes chamar filhos da puta", da comunicação social, que noticiaram a acumulação da reforma com a totalidade do vencimento de presidente do governo, benesse já então abolida a nível nacional. Indignados, os deputados da oposição classificaram a atitude social-democrata de "garotice", "palhaçada" e "própria de uma república de bananas", tendo o líder do CDS-PP proposto que a gravação dos aplausos "fosse enviada para a Quinta Vigia [residência oficial do governante] e para a Coreia do Norte"."As provocações (diz o sr. Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido!" Eça parece descrever a sessão comemorativa dos 25 anos da autonomia, celebrada a 1 de Julho de 2002, durante a qual a maioria reagiu às críticas das oposições ao "poder absoluto e autocrático" na Madeira, ruidosamente, com "todas as variedades sonoras de uma argumentação eloquente!" Um dos convidados, o ministro da República, Monteiro Diniz, foi demovido de abandonar a sessão presidida pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, quando Jaime Ramos o atacou como "resquício do colonialismo". Terá sido para evitar a reedição da cena que o Presidente Cavaco Silva a não incluiu no programa da sua primeira visita oficial à região, uma sessão de boas-vindas no parlamento, como fez nos Açores. O chefe de Estado seguiu o conselho de Jardim, para quem "era dar uma péssima imagem da Madeira mostrar o bando de loucos que está dentro da Assembleia Legislativa". E recebeu no hotel onde se hospedou os representantes das oposições que este conselheiro de Estado também trata por "rafeiros", "subversivos idiotas", "malandros", "canalhas", "tarados", "psiquicamente doentes".Advertência final de Eça: "Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exaltada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara!"
14.12.2008, Texto Tolentino de Nóbrega
Insultos, agressões físicas e ameaças. É a Assembleia da Madeira, que de tal forma lembra Uma Campanha Alegre que foi ordenada uma décalage de cinco minutos na transmissão do plenário online. Mais ou menos democrática, a ideia foi impedir o visionamento de "cenas desprestigiantes". Mas isso não muda a realidade. Memórias de mais de 30 anos de episódios.
A opinião tem pela Câmara dos Deputados um sentimento unânime e unanimemente declarado: o tédio. Diz-se mal da Câmara por toda a parte. Os jornais mais sérios falam constantemente da sua improdutividade. Ela é geralmente considerada como um sórdido covil de intrigas. Se se pergunta:- Que houve hoje na Câmara?- Uma farsa - respondem uns.- Uma feira - respondem outros."Não era sobre a Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) que escrevia Eça de Queirós, em Maio de 1871. O parlamento regional só foi criado um século depois, mas em apenas três décadas de existência, marcada por picardias nalguns casos de cariz insultuoso e acompanhadas de agressões físicas, pouco parece diferir da câmara de deputados retratada pelo escritor em Uma Campanha Alegre. O recente episódio do deputado do PND, José Manuel Coelho, a desfraldar uma bandeira com a cruz suástica no parlamento, em protesto contra o novo regimento, que restringia os direitos de iniciativa e intervenção dos partidos da oposição, colocou nas primeiras páginas dos jornais e na abertura dos telejornais o hemiciclo da Avenida do Mar. Sobretudo pela consequente "imediata suspensão" do deputado, acusado de "demência" em processo sumaríssimo e sem direito a defesa, por requerimento do PSD. No dia seguinte, prossegue Eça de Queirós, "os jornais políticos vêm cheios destas fórmulas: 'A Câmara ontem deu um espectáculo triste para quem preza os verdadeiros princípios... 'A Câmara está oferecendo a prova da sua falta de independência...' 'A Câmara salta por cima dos princípios mais rudimentares da administração'."- O parlamento é uma vergonha - diz-se nos cafés.- Vamos aos touros! - exclama-se nas galerias (textual).- Amanhã há escândalo! - murmura-se na véspera das sessões.E houve. De facto, o deputado foi impedido de entrar no parlamento. E o líder regional do PND, Baltazar Aguiar, expulso da galeria do público por exaltados protestos contra a suspensão do "deputado do relógio", sem prévio procedimento judicial. "Não! Isto é extremamente sério! Para que o presidente de uma Câmara mande evacuar as galerias com o motivo de elas não presenciarem as posições que os deputados estão tomando", escreve Queirós. Depois, adianta o escritor, "aparecem contra ela panfletos satíricos". No quinzenário Garajau, a preencher toda a capa, surge uma foto de Jardim, vestido de Hitler e bandeira nazi em fundo, com uma sua frase sobre a oposição em parangonas: "Mas não posso estar em todo o lado e por isso peço ao povo que vá tratando deles enquanto eu vou trabalhando."Fazem-se-lhe epigramas, põem-se-lhe alcunhas. Os folhetins escarnecem-na; os jornais de notícias contam com uma singeleza dramática: "Ontem a sessão passou-se em injúrias pessoais."Contam os diários que Jardim verberou aquelas "palhaçadas de uns analfabetos, na Assembleia Regional". Apontando-lhes "impotência" e "indigência cultural e política", disse que têm por objectivo "tentar abandalhar os trabalhos da assembleia" e "são preparadas fora desta por conhecida burguesia ambiciosa", a qual, "se tivesse rédea solta, voltar-se-ia à exploração do povo como no passado". Para cortar o mal pela raiz, isto é, o comando exterior, o presidente do parlamento, Miguel Mendonça, ordenou que houvesse uma "décalage de cinco minutos" na transmissão do "plenário online", para poder impedir o visionamento de "cenas desprestigiantes".Um dos primeiros episódios nada prestigiantes aconteceu logo no final da primeira legislatura, quando o parlamento ainda funcionava no antigo salão nobre da Junta Geral do Distrito, com deputados sentados em carteiras escolares. O padre Martins Júnior, então deputado eleito pela UDP, foi violentamente agredido no interior da assembleia. Identificou como autor da agressão, confirmada por relatório médico, um deputado do PSD, mas o inquérito acabou por ser arquivado por falta de provas. Quase 30 anos depois, em Março de 2006, o secretário-geral do PSD, Jaime Ramos, terá tentado agredir o irmão daquele padre, Bernardo Martins (PS), no que foi impedido por outros deputados que participavam na conferência de líderes, no intervalo do plenário. Por "filho da puta", entre outros impropérios, foi tratado o deputado do PS só porque se insurgiu contra a forma pouco cortês como Ramos reagiu a uma intervenção de Violante Saramago Matos. "Vai à merda", rematou o número dois do PSD madeirense quando esta deputada do Bloco de Esquerda discordava da interpretação do regimento a adaptar numa sessão especial. Como noutras circunstâncias, o presidente do parlamento, Miguel Mendonça, lembrou que não tem "poderes disciplinares sobre os deputados" que, no quadro dos seus deveres, têm a obrigação de respeitar a autoridade da mesa". Mas esta, lamentou, nem sempre é obedecida, "apesar dos apelos à contenção". Mendonça, conforme revelaram deputados oposicionistas, terá sido mesmo insultado por um companheiro de partido, numa anterior conferência de líderes.Pouco cavalheiro tinha sido igualmente Ramos ao tratar por "cabra" outra deputada, Rita Pestana (PS), num plenário. Mais longe foi, no final da legislatura em 2004, na ameaça de "um tiro nos cornos" ao líder comunista Edgar Silva. Em debate estava a constituição de uma comissão de inquérito pedida pelo PCP à derrapagem da empreitada do Parque Temático de Santana, em que estariam envolvidas construtoras ligadas ao líder parlamentar do PSD.Por "tonto" tratou Jardim o antigo primeiro-ministro António Guterres e Jaime Gama, antes de o actual presidente da Assembleia da República descobrir que o líder insular passara de Bokassa a "supremo exemplo de democracia". Na discussão do Plano e Orçamento para 1996, prolongados até de madrugada, Jardim, numa eufórica reacção pós-jantar, interrompeu várias vezes a intervenção de Gil França, chamando "burro" ao orador. Mas não gostou que o deputado do PS lhe devolvesse o epíteto "com a mesma simpatia", e, em protesto, abandonou a sessão, o que, a qualquer pretexto, se repete na única vez que anualmente vai ao parlamento, para discussão do Plano e Orçamento. Dois anos depois, novamente num desses debates, o presidente madeirense classificou de "delinquentes potenciais" e "perigo social" os dois deputados do PCP, Edgar Silva e Leonel Nunes. Ainda em 1998, o deputado Coito Pita (PSD), em tom ameaçador, desafiou a "ir lá fora" Martins Júnior (então no PS), designando-o por "fantoche comunista", numa troca de insultos que esteve à beira das vias de facto. A Martins Júnior o PSD levantou a imunidade para responder em tribunal pelas suspeitas levantadas ao desaparecimento de valiosíssimas pratas, em 1997, aquando da transferência do parlamento para a antiga Alfândega, a cargo de deputados da maioria que, não raras vezes, têm posto em causa as capacidades intelectuais de deputados das minorias. Em Fevereiro de 2002, o PSD aprovou na Assembleia um requerimento no sentido de proceder à "avaliação das faculdades mentais" do deputado João Carlos Gouveia, hoje líder do PS madeirense. "É próprio dos regimes fascistas e dos ditadores ameaçarem os seus opositores com a prisão ou com o hospital psiquiátrico", comentou Bernardo Martins, líder da bancada socialista, ao apresentar um voto de protesto pela apresentação do requerimento e pela conduta do presidente ao admiti-lo para votação, "atentatória da dignidade dos deputados" e "desprestigiante para o parlamento e para a região".Por condenar "o comportamento de verdadeiros garotos" dos seus companheiros de partido, Virgílio Pereira foi alvo de processo disciplinar ordenado por Jardim e afastado da vice-presidência da comissão política do PSD, num congresso extraordinário convocado expressamente com esse objectivo. "Que me demitam, se quiserem. Não sou eu que prejudico o partido, o que prejudica o PSD são certos comportamentos", respondeu Pereira. "Talvez seja o político que menos insultou os adversários, algo que, pelos vistos, se tornou hábito na Madeira. Nunca utilizei termos como 'burro' ou 'tonto' para me dirigir aos meus opositores, por exemplo", lembrou, numa indirecta a Jardim, aquele antigo presidente da Câmara do Funchal e ex-eurodeputado. "Se não respeitamos a dignidade dos cargos, não dignificamos a política", advertiu.Quando, também em 2005, o Tribunal do Funchal condenou João Carlos Gouveia por crime de difamação a Jardim, a defesa do deputado contrapôs com os "excessos verbais" do governante que mereceu do jornal espanhol El Mundo o título de "o mestre português do insulto". A sentença reconheceu que "o contexto político da Madeira é caracterizado por uma particular contundência, à qual não é alheio o discurso político do próprio" presidente do governo regional. Aliás, imitado pelos seus pares. "Burro" chamou Ramos, em Dezembro de 2004, ao líder do PS, Jacinto Serrão, na discussão do programa de governo. Interrompido por constantes apartes do chefe do governo, Serrão lembrou a Jardim que na véspera ouvira em silêncio o seu discurso de duas horas e meia, tão longo que, disse, faria "adormecer rinocerontes". A este comentário reagiu energicamente Ramos, que endereçou ao dirigente socialista os epítetos de "rinoceronte", "gatuno" e "burro".Aconselhando Ramos a não entrar pelo "caminho da zoologia", Serrão acusou o também secretário-geral do PSD de chegar a "milionário ao fim de dez anos", quando antes era "vendedor de sifões de retretes". "Jaiminho, Jaiminho, onde arranjaste o dinheiro?", questionou. O ambiente aqueceu tanto, com troca de impropérios imperceptíveis, que ficou impróprio para prosseguir o debate. No longo discurso de abertura, Jardim acusou o PS de "colonialista", o PCP de "polícia política" e o BE de "partido das tias de Cascais", além dos habituais ataques a Lisboa, esteja no poder o PS ou o PSD. Em Julho de 2005, quando Jardim quis expulsar os chineses da Madeira, o PSD aprovou no parlamento um voto de protesto pelo pedido de desculpas à China apresentado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros. O documento mostrava estranheza "não só ela demência de tal medida, bem como pela pessoa que a produz", o "sr. Diogo" [Freitas do Amaral].Um mês antes, os deputados sociais-democratas aplaudiram, de pé, os insultos de Jardim aos "bastardos, para não lhes chamar filhos da puta", da comunicação social, que noticiaram a acumulação da reforma com a totalidade do vencimento de presidente do governo, benesse já então abolida a nível nacional. Indignados, os deputados da oposição classificaram a atitude social-democrata de "garotice", "palhaçada" e "própria de uma república de bananas", tendo o líder do CDS-PP proposto que a gravação dos aplausos "fosse enviada para a Quinta Vigia [residência oficial do governante] e para a Coreia do Norte"."As provocações (diz o sr. Melício) eram acompanhadas de murros sobre as carteiras. Quadro esplêndido!" Eça parece descrever a sessão comemorativa dos 25 anos da autonomia, celebrada a 1 de Julho de 2002, durante a qual a maioria reagiu às críticas das oposições ao "poder absoluto e autocrático" na Madeira, ruidosamente, com "todas as variedades sonoras de uma argumentação eloquente!" Um dos convidados, o ministro da República, Monteiro Diniz, foi demovido de abandonar a sessão presidida pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, quando Jaime Ramos o atacou como "resquício do colonialismo". Terá sido para evitar a reedição da cena que o Presidente Cavaco Silva a não incluiu no programa da sua primeira visita oficial à região, uma sessão de boas-vindas no parlamento, como fez nos Açores. O chefe de Estado seguiu o conselho de Jardim, para quem "era dar uma péssima imagem da Madeira mostrar o bando de loucos que está dentro da Assembleia Legislativa". E recebeu no hotel onde se hospedou os representantes das oposições que este conselheiro de Estado também trata por "rafeiros", "subversivos idiotas", "malandros", "canalhas", "tarados", "psiquicamente doentes".Advertência final de Eça: "Não queremos que acusem as Farpas de parciais! Não se dirá que foi a nossa pena, exaltada pela fantasia e pela ironia, que desenhou os contornos de uma sessão memorável na Câmara!"
Comentários